Amor que morre O nosso amor morreu... Quem o diria! Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta, Ceguinha de te ver, sem ver a conta Do tempo que passava, que fugia! Bem estava a sentir que ele morria... E outro clarão, ao longe, já desponta! Um engano que morre... e logo aponta A luz doutra miragem fugidia... Eu bem sei, meu Amor, que pra viver São precisos amores, pra morrer, E são precisos sonhos para partir. E bem sei, meu Amor, que era preciso Fazer do amor que parte o claro riso De outro amor impossível que há-de vir! Florbela Espanca
Hoje de manhã saí muito cedo Hoje de manhã saí muito cedo, Por ter acordado ainda mais cedo E não ter nada que quisesse fazer... Não sabia que caminho tomar Mas o vento soprava forte, varria para um lado, E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas. Assim tem sido sempre a minha vida, e Assim quero que possa ser sempre -- Vou onde o vento me leva e não me Sinto pensar. Alberto Caeiro
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada Quem me dera que eu fosse o pó da estrada E que os pés dos pobres me estivessem pisando... Quem me dera que eu fosse os rios que correm E que as lavadeiras estivessem à minha beira... Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio E tivesse só o céu por cima e a água por baixo... Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro E que ele me batesse e me estimasse... Antes isso que ser o que atravessa a vida Olhando para trás de si e tendo pena... Alberto Caeiro
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta, Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter, Pergunto a mim próprio devagar Porque sequer atribuo eu Beleza às coisas. Uma flor acaso tem beleza? Tem beleza acaso um fruto? Não: têm cor e forma E existência apenas. A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão. Não significa nada. Então porque digo eu das coisas: são belas? Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver, Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens Perante as coisas, Perante as coisas que simplesmente existem. Que difícil ser próprio e não ser senão o visível! Alberto Caeiro
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e nao estamos de maos enlaçadas. (Enlacemos as maos.) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e nao fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as maos, porque nao vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixoes que levantam a voz, Nem invejas que dao movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento - Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada, Pagaos inocentes da decadencia. Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as maos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças. E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço. Ricardo Reis